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Sumário

Página do Título

Introdução

Inocência

A Retirada da Laguna

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O Autor

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Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, primeiro e único visconde de Taunay, (Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1843 — Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1899) foi um nobre, escritor, músico, professor, engenheiro militar, político, historiador e sociólogo brasileiro. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando a Cadeira n.° 13. Também é o patrono da Cadeira n.° 17 da Academia Brasileira de Música.

Alfredo Taunay nasceu no Rio de Janeiro, em uma família aristocrática de origem francesa. Seu pai, Félix Émile Taunay, 2º barão de Taunay, era pintor, professor e diretor da Academia Imperial de Belas Artes, e seu avô paterno, 1º barão de Taunay, foi o também conceituado pintor Nicolas-Antoine Taunay, membro da Missão Artística Francesa. Sua mãe, Gabrielle Herminie de Robert d'Escragnolle, era irmã do barão d'Escragnolle, filha de Alexandre-Louis-Marie de Robert, conde d'Escragnolle, sobrinha do visconde de Beaurepaire-Rohan e neta de Jacques Antoine Marc, conde de Beaurepaire.

Após obter seu bacharelado em literatura no Colégio Pedro II em 1858, aos quinze anos de idade, Taunay estudou física e matemática na Escola Militar de Aplicação, da qual se originaram a Escola Militar da Praia Vermelha (atual Academia Militar de Agulhas Negras), a Escola Técnica do Exército (atual Instituto Militar de Engenharia) e a Escola Central Politécnica (atual Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro), tornando-se bacharel em Matemática e Ciências Naturais em 1863.

Casou-se com Cristina Teixeira Leite, filha do barão de Vassouras, neta do primeiro barão de Itambé e sobrinha-neta do barão de Aiuruoca. Seu filho foi o historiador Afonso d'Escragnolle Taunay, membro da Academia Brasileira de Letras.

Taunay lutou na Guerra do Paraguai como engenheiro militar, de 1864 a 1870. Desta experiência surgiu seu livro La Retraite de Laguna, de 1871. Após seu retorno ao Rio de Janeiro, Taunay lecionou na Escola Militar e iniciou simultaneamente sua carreira como político do Segundo Império. Atingiu o posto de major em 1875. Foi eleito para a Câmara dos Deputados pela província de Goiás em 1872, cargo para o qual seria reeleito três anos mais tarde.

O Conde d'Eu (com a mão na cintura no centro a direita) e à sua esquerda, José Paranhos, futuro visconde do Rio Branco, e entre ambos, o visconde de Taunay, cercados por oficiais brasileiros durante a Guerra do Paraguai.

No dia 26 de abril de 1876, foi nomeado presidente da província de Santa Catarina. Assumiu o cargo de 7 de junho de 1876 a 2 de janeiro de 1877, quando o passou ao vice-presidente Hermínio Francisco do Espírito Santo, que presidiu a província por apenas um dia. Em 1 de janeiro de 1877, durante seu mandato como presidente, ele havia inaugurado, no Largo do Palácio, atual Praça Quinze de Novembro, o monumento aos heróis catarinenses da Guerra do Paraguai.

Inconformado com a queda do Partido Conservador, Taunay retirou-se da vida política em 1878, deixando o país para estudar, durante dois anos, na Europa. Em 1881 foi eleito deputado pela província de Santa Catarina e, em 1885, nomeado presidente da província do Paraná. Em Curitiba, foi um dos responsáveis pela criação do primeiro parque da cidade, o Passeio Público, inaugurado em 2 de maio de 1886 (véspera do dia da entrega do cargo).. Exerceu tal cargo até 3 de maio de 1886. Neste ano, torna-se senador por Santa Catarina, tendo sido escolhido de uma lista tríplice pelo Imperador em 6 de setembro de 1886, sucedendo Jesuíno Lamego da Costa.

Enquanto senador, integrou, em maio de 1888, a comissão nomeada para analisar o projeto de lei vindo da Câmara que aboliria a escravidão do Brasil.

Recebeu o título nobiliárquico de visconde de Taunay de D. Pedro II em 6 de setembro de 1889. Com a proclamação da República naquele mesmo ano, Taunay deixou a política para sempre.

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Inocência

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Capítulo I: O sertão e o sertanejo

Todos vós percebeis o trabalho da natureza, cuja ação é eterna.

(Goethe, Fausto)

Então com passo tranqüilo metia-me eu por algum recanto da floresta, algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que pudesse crer ter primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse interpor-se entre mim e a natureza.

(J. J. Rousseau, O Encanto da Solidão)

A estrada que da villa de Sant’Anna do Paranahyba leva ao ponto abandonado de Camapuan corta uma extensa e mal-povoada zona da parte sul-oriental da vastíssima provincia de Mato-Grosso. Desde aquella villa, que assenta quasi no vertice do angulo em que confinam os territorios de S. Paulo, Minas Geraes, Goyaz e Mato Grosso, até o rio Sucuriú, afluente do magestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda-se comodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras, rareiam, porém, depois as casas, mais e mais, caminham-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao retiro de João Pereira, guarda avançada daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho o viajante desses alongados páramos, oferece-lhe momentâneo agasalho e o provê da matalotagem precisa para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria e Nioac, no Baixo Paraguai.

Ali começa o sertão chamado bruto.

Pousos sucedem a pousos, e nenhum teto habitado ou em ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante contra a frialdade das noites, contra o temporal que ameaça, ou a chuva que está caindo. Por toda a parte, a calma da campina não arroteada; por toda a parte, a vegetação virgem, como quando aí surgiu pela vez primeira.

A estrada que atravessa essas regiões incultas desenrola-se à maneira de alvejante faixa, aberta que é na areia, elemento dominante na composição de todo aquele solo, fertilizado aliás por um sem-número de límpidos e borbulhantes regatos, ribeirões e rios, cujos contingentes são outros tantos tributários do claro e fundo Paraná ou, na contravertente, do correntoso Paraguai.

Essa areia solta e um tanto grossa tem cor uniforme que reverbera com intensidade os raios do sol, quando nela batem de chapa. Em alguns pontos é tão fofa e movediça que os animais das tropas viageiras arquejam de cansaço, ao vencerem aquele terreno incerto, que lhes foge de sob os cascos e onde se enterram até meia canela.

Freqüentes são também os desvios, que da estrada partem de um e outro lado e proporcionam, na mata adjacente, trilha mais firme, por ser menos pisada.

Se parece sempre igual o aspecto do caminho, em compensação mui variadas se mostram as paisagens em torno.

Ora e a perspectiva dos cerrados, não desses cerrados de arbustos raquíticos, enfezados e retorcidos de São Paulo e Minas Gerais, mas de garbosas e elevadas árvores que, se bem não tomem, todas, o corpo de que são capazes à beira das águas correntes ou regadas pela linfa dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama o terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que as alimenta; ora são campos a perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de viridente e mimosa grama, toda salpicada de silvestres flores; ora sucessões de luxuriantes capões, tão regulares e simétricos em sua disposição que surpreendem e embelezam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, meio secas, onde nasce o altivo buriti e o gravata entrança o seu tapume espinhoso.

Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro.

Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição.

Acalmado aquele ímpeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como sinal da avassaladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos

Através da atmosfera enublada mal pode então coar a luz do sol. A incineração é completa, o calor intenso, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro às outras.

Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas.

É cair, porém, daí a dias copiosa chuva, e parece que uma varinha de fada andou por aqueles sombrios recantos a traçar às pressas jardins encantados e nunca vistos. Entra tudo num trabalho intimo de espantosa atividade. Transborda a vida. Não há ponto em que não brote o capim, em que não desabrochem rebentões com o olhar sôfrego de quem espreita azada ocasião para buscar a liberdade, despedaçando as prisões de penosa clausura.

Aquela instantânea ressurreição nada, nada pode pôr peias.

Basta uma noite, para que formosa alfombra verde, verde-claro, verde-gaio, acetinado, cabra todas as tristezas de há pouco. Aprimoram-se depois os esforços; rompem as flores do campo que desabotoam as carícias da brisa as delicadas corolas e lhe entregam as primícias dos seus cândidos perfumes.

Se falham essas chuvas vivificadoras, então, por muitos e muitos meses, aí ficam aquelas campinas, devastadas pelo fogo, lugubremente iluminadas por avermelhados clarões, sem uma sombra, um sorriso, uma esperança de vida, com todas as suas opulências e verdejantes pimpolhos ocultos, como que raladas de dor e mudo desespero por não poderem ostentar as riquezas e galas encerradas no ubertoso seio.

Nessas aflitas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de vez em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se à terra, a fim de agarrar um ou outro réptil chamuscado do fogo que lavrou.

Rompe também o silêncio o grasnido do caracará, que aos pulos procura insetos e cobrinhas ou, junto ao solo, segue o vôo dos urubus, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino olfato, buscam a carniça putrefata.

É o caracará comensal do urubu. De parceria se atira, quando urgido pela fome, à rês morta e, intrometido como é, a custo de alguma bicada do pouco amável conviva, belisca do seu lado no imundo repasto.

Se passa o caracará a vista do gavião, precipita-se este sobre ele com vôo firme, dá-lhe com a ponta da asa, atordoa-o, atormenta-o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada superioridade.

Nada, com efeito, o mete em brios.

Pelo contrário, mal levou dois ou três encontrões do miúdo, mas audaz adversário, baixa prudente à terra e põe-se aí desajeitadamente aos saltos. apresentando o adunco bico ao antagonista, que com a extremidade das asas levanta pó e cinza, tão de perto as arrasta ao chão.

Afinal, de cansado, deixa o gavião o folguedo, segurando de um bote a serpesinha, que em custoso rasto, procurava algum buraco onde fosse, mais a salvo, pensar as fundas queimaduras.

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Tais são os campos que as chuvas não vêm regar.

Com que gosto demanda então o sertanejo os capões que lá de bem longe se avistam nas encostas das colinas e baixuras, ao redor de alguma nascente orlada de pindaíbas e buritis?!

Com que alegria não saúda os formosos coqueirais, núncios da linfa que lhe há de estancar a sede e banhar o afogueado rosto?!

Enfileiram-se às vezes as palmeiras com singular regularidade na altura e conformação; mas não raro amontoam-se em compactos maciços, dos quais se segregam algumas mais e mais, a acompanhar com as raízes qualquer tênue fio d'água, que coleia falto de forças e quase a sumir-se na ávida areia.

Desde longe dão na vista esses capões.

É a princípio um ponto negro, depois uma cúpula de verdura, afinal, mais de perto, uma ilha de luxuriante rama, oásis para os membros lassos do viajante exausto de fadiga, para os seus olhos encandeados e sua garganta abrasada.

Então, com sofreguidão natural, acolhe-se ele ao sombreado retiro, onde prestes desarreia a cavalgadura, à qual dá liberdade para ir pastar, entregando-se sem demora ao sono reparador que lhe trará novo alento para prosseguir na cansativa jornada.

Ao homem do sertão afiguram-se tais momentos incomparáveis, acima de tudo quanto possa idear a imaginação no mais vasto circulo de ambições.

Satisfeita a sede que lhe secara as fauces, e comidas umas colheres de farinha de mandioca ou de milho, adoçada com rapadura, estira-se a fio comprido sobre os arreios desdobrados e contempla descuidoso o firmamento azul, as nuvens que se espacejam nos ares, a folhagem lustrosa e os troncos brancos das pindaíbas a copa dos ipês e as palmas dos buritis a ciciar a modo de harpas eólias, músicas sem conta com o perpassar da brisa.

Como são belas aquelas palmeiras!

O estípite liso, pardacento, sem manchas mais que pontuadas estrias, sustenta denso feixe de pecíolos longos e canulados, em que assentam flabelos abertos como um leque, cujas pontas se acurvam flexíveis e tremulantes.

Na base em torno da coma, pendem, amparados por largas espatas, densos cachos de cocos tão duros, que a casca luzidia, revestida de escamas romboidais e de um amarelo alaranjado, desafia por algum tempo o férreo bico das araras.

Também, com que vigor trabalham as barulhentas aves antes de conseguir a apetecida e saborosa amêndoa! Em grupos juntam-se elas, umas vermelhas como chispas soltas de intensa labareda, outras versicolores, outras, pelo contrário, de todo azuis, de maior viso e que, por parecerem negras em distancia, têm o nome de araraúnas. Ali ficam alcandoradas, balouçando-se gravemente e atirando, de espaço a espaço, às imensidades das dilatadas campinas notas estridentes, quando não seja um clamor sem fim, ao quererem multas disputar o mesmo cacho. Quase sempre, porém, estão a namorar-se aos pares, pousadas uma bem encostadinha à outra.

Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras; bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade.

Correm as horas vem o sol descambando; refresca a brisa, e sopra rijo o vento. Não ciciam mais os buritis; gemem, e convulsamente agitam as flabeladas palmas.

É a tarde que chega.

Desperta então o viajante; esfrega os olhos; distende preguiçosamente os braços; boceja; bebe um pouco d'água; fica uns instantes sentado, a olhar de um lado para outro, e corre afinal a buscar o animal, que de pronto encilha e cavalga.

Uma vez montado, lá vai ele a passo ou a trote, bem disposto de corpo e de espírito, por aqueles caminhos além, em demanda de qualquer pouso onde pernoite.

Quanta melancolia baixa à terra com o cair da tarde!

Parece que a solidão alarga os seus limites para se tornar acabrunhadora. Enegrece o solo; formam os matagais sombrios, maciços, e ao longe se desdobra tênue véu de um roxo uniforme e desmaiado, no qual, como linhas a meio apagadas, ressaltam os troncos de uma ou outra palmeira mais alterosa.

É a hora, em que se aperta de inexplicável receio o coração. Qualquer ruído nos causa sobressalto; ora o grito aflito da zabelê nas matas, ora as plangentes notas do bacurau a cruzar os ares. Freqüente é também amiudarem-se os pios angustiados de alguma perdiz, chamando ao ninho o companheiro extraviado, antes que a escuridão de todo lhe impossibilite a volta.

Quem viaja atento às impressões íntimas, estremece, mau grado seu, ao ouvir nesse momento de saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe, ou o silvar distante de uma locomotiva impossível. São insetos ocultos na macega que trazem essa ilusão, por tal modo viva e perfeita que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundos afora a doidejar e a criar mil fantasias,

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Espalham-se, por fim, as sombras da noite.

O sertanejo que de nada cuidou, que não ouviu as harmonias da tarde, nem reparou nos esplendores do céu, que não viu a tristeza a pairar sobre a terra, que de nada se arreceia, consubstanciado como está com a solidão, pára, relanceia os olhos ao derredor de si e, se no lagar pressente alguma aguada, por má que seja, apeia-se, desencilha o cavalo e reunindo logo uns gravetos bem secos, tira fogo do isqueiro, mais por distração do que por necessidade.

Sente-se deveras feliz. Nada lhe perturba a paz do espírito ou o bem-estar do corpo. Nem sequer monologa, como qualquer homem acostumado a conversar.

Raros são os seus pensamentos: ou rememora as léguas que andou, ou computa as que tem que vencer para chegar ao término da viagem.

No dia seguinte, quando aos clarões da aurora acorda toda aquela esplêndida natureza, recomeça ele a caminhar, como na véspera, como sempre.

Nada lhe parece mudado no firmamento: as nuvens de si para si são as mesmas. Dá-lhe o sol, quando muito, os pontos cardeais, e a terra só lhe prende a atenção, quando algum sinal mais particular pode servir-lhe de marco miliário na estrada que vai trilhando.

—Bom! exclama em voz alta e alegre ao avistar algum madeiro agigantado ou uma disposição especial de terras, lá está a peúva grande... Cheguei ao Barranco Alto. Até ao pouso de Jacaré há quatro léguas bem puxadas.

E, olhando para o Sol, conclui:

—Daqui a três horas estou batendo fogo.

Ocasiões há em que o sertanejo dá para assobiar. Cantar, é raro; ainda assim, à surdina; mais uma voz intima, um rumorejar consigo, do que notas saídas do robusto peito. Responder ao pio das perdizes ou ao chamado agoniado da esquiva jaó, é o seu divertimento em dias de bom humor.

É-lhe indiferente o urro da onça. Só por demais repara nas muitas pegadas, que em todos os sentidos ficam marcadas na areia da estrada.

—Que bichão! murmura ele contemplando um rasto mais fortemente impresso no solo; com um bom onceiro não se me dava de acuar este diabo e meter-lhe uma chumbada no focinho.

O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja varado.

Cresce-lhe o orgulho na razão da extensão e importância das viagens empreendidas; e seu maior gosto cifra-se em enumerar as correntes caudais que transpôs, os ribeirões que batizou, as serras que transmontou e os pantanais que afoitamente cortou, quando não levou dias e dias a rodeá-los com rara paciência.

Cada ano que finda traz-lhe mais um valioso conhecimento e acrescenta uma pedra ao monumento da sua inocente vaidade.

—Ninguém pode comigo, exclama ele enfaticamente. Nos campos da Vacaria, no sertão do Mimoso e nos pântanos do Pequiri, sou rei.

E esta presunção de realeza infunde-lhe certo modo de falar e de gesticular majestático em sua singela manifestação.

A certeza que tem de que nunca poderá perder-se na vastidão, como que o liberta da obsessão do desconhecido, o exalta e lhe dá foros de infalibilidade.

Se estende o braço, aponta com segurança no espaço e declara peremptoriamente:

—Neste rumo daqui a 20 léguas, fica o espigão mestre de uma serra braba, depois um rio grosso; dali a cinco léguas outro mato sujo que vai findar num brejal. Se vassuncê frechar direitinho assim umas duas horas, topa com o pouso do Tatu, no caminho que vai a Cuiabá.

O que faz numa direção, com a mesma imperturbável serenidade e firmeza indica em qualquer outra.

A única interrupção que aos outros consente, quando conta os inúmeros descobrimentos, é a da admiração. À mínima suspeita de dúvida ou pouco caso, incendem-se-lhe de cólera as faces e no gesto denuncia indignação.

— Vassuncê não credita! protesta então com calor. Pois encilhe o seu bicho e caminhe como eu lhe disser. Mas assunte bem, que no terceiro dia de viagem ficará decidido quem é cavouqueiro e embromador. Uma coisa é mapiar à toa, outra andar com tento por estes mundos de Cristo.

Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já enevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe da o substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera outrora.

Esses discípulos, aguçada a curiosidade com as repetidas e animadas descrições das grandes cenas da natureza, num belo dia desertam da casa paterna, espalham-se por aí além, e uns nos confins do Paraná, outros nas brenhas de São Paulo, nas planuras de Goiás ou nas bocainas de Mato Grosso, por toda a parte enfim, onde haja deserto, vão pôr em ativa prática tudo quanto souberam tão bem ouvir, relembrando as façanhas do seu respeitado progenitor e mestre.

Capítulo II: O viajante

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Próprio de espírito sorumbático, é andar sempre calado: tagarelar é o encanto e a alma da vida.

La Chaussée

Comigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal comichão de falar que não posso deixar de desembuchar o que me vem à boca.

Cervantes, D. Quixote.

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O dia 15 de julho de 1860 era dia claro, sereno e fresco, como costumam ser os chamados de inverno no interior do Brasil.

Ia o Sol alto em seu percurso, iluminando com seus raios, não muito ardentes para regiões intertropicais, a estrada, cujo aspecto há pouco tentamos descrever e que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter aos campos de Camapuã.

A essa hora, um viajante, montado numa boa besta tordilho-queimada, gorda e marchadeira, seguia aquela estrada. A sua fisionomia e maneiras de trajar denunciavam de pronto que não era homem de lida fadigosa e comum ou algum fazendeiro daquelas cercanias que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu-do-chile de abas amplas e cingido de larga fita preta, sobre os ombros um poncho-pala de variegadas cores e calçava botas de couro da Rússia bem feitas e em bom estado de conservação.

Tinha quando muito vinte e cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos cortados quase à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido.

Na mão empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distraidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de árvores que se dobravam ao alcance do braço.

Vinha só e, no momento em que damos começo a esta singela história, achava-se no bonito trecho de caminho que medeia entre a casa de Albino Lata e a do Leal, a sete boas léguas da sezonática e decadente Vila de Sant'Ana do Paranaíba

Nesta porção de estrada, ensombrada pelas árvores de vistoso cerrado, o leito, ainda que já bastante arenoso, é firme e parece mais aléia de bem tratado jardim, do que caminho de tropas e carreadores.

Ainda aumenta os encantos daquele lance a inúmera quantidade de rolas caboclas a brincar na areia e de pombas de cascavel, cujo bater das asas produz um arruído tão característico e singular.

O nosso viajante, se caminhava distraído e meio pensativo, não parecia, contudo, de gênio sombrio ou pouco divertido.

Muito ao contrário, sacudia às vezes o torpor em que vinha e entrava a cantarolar, ou assobiar, esporeando a valente cavalgadura, que na marcha que tomava ia abanando alternadamente as orelhas com o movimento cadencial da cabeça.

Numa dessas reações contra alguma preocupação, disse em voz alta, puxando por um relógio de prata, seguro em corrente do mesmo metal:

—Às duas horas, pretendo sestear no paiol do Leal. Falta pouco para o meio-dia, e tenho tempo diante de mim a botar fora.

Moderou, pois, a andadura que levava o animal e mais ativamente recomeçou a zurzir os galhos das árvores, bocejando de tédio.

Também pouco tempo caminhou só, por isto que em breve ao seu lado emparelhou outro viajante, escanchado num cavalinho feio e zambro, mas muito forte, o qual, coberto como estava de suor, mostrava ter vindo quase a galope.

Homem já de alguma idade, o recém-chegado era gordo, de compleição sangüínea, rosto expressivo e franco. Trajava à mineira e parecia como realmente era, morador daquela localidade.

—Olá, patrício, exclamou ele conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava, então se vai botando para Camapuã?

Olhou o nosso cavaleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem-cerimônia e meio enviesado respondeu:

—Talvez sim... talvez não... Mas a que vem a pergunta?

—Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nem sequer o saudei... Sou mesmo um estabanado... Deus esteja convosco. Isto sempre me acontece... A minha língua fica às vezes tão doida que se põe logo a bater-me nos dentes... que é um Deus nos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe, por vezes já me tem vindo dano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu sela malcriado, Deus de tal me defenda, abrenúncio; mas pega-me tal comichão de falar que vou logo, sem tirte, nem guarte, dando à taramela...

A volubilidade com que foram ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos altivo.

Notou então a fisionomia alegre e bonachã do tagarela e, com ar de simpatia, correspondeu ao comunicativo sorriso daquele que, à força, queria travar conversação.

—Pelo que vejo, disse ele, o Sr. gosta de prosear.

—Ora se! retrucou o mineiro. Nestes sertões só sinto a falta de uma coisa: é de um cristão com quem de vez em quando dê uns dedos de paroula. Isto sim, por aqui é vasqueiro. Tudo anda tão calado!... uma verdadeira caipiragem!... Eu, não. Sou das Gerais, geralista como por cá se diz; nasci no Paraibana, conheci no meu tempo pessoas de muita educação, gente mesma de truz e fui criado na Mata do Rio como homem e não como bicho do monte.

—Ah! o senhor é de Minas?

—Gerais, se me faz favor. Batizei-me em Vassouras, mas sou mineiro da gema. Andei seca- e- meca antes de vir deitar poita neste país. Isto já faz muito tempo, pois também vou ficando velho. Há mais de quarenta anos pelo menos que sai da casa dos meus pais.

E interrompendo o que dizia, perguntou:

—O senhor também é de Minas?

—Nhor-não, respondeu o outro. Sou caipira de São Paulo: nasci na Vila de Casa Branca, mas fui criado em Ouro Preto.

—Ah! Na cidade Imperial ?...

—Lá mesmo.

—Então é quase de casa, replicou o mineiro rindo-se ruidosamente. Ora, quem diria! Por isto me batia a passarinha, quando vi o seu rasto fresco na areia. Ai vai, disse eu por vezes com os meus botões, um sujeitinho que não tem pressa de pousar. Também tocando o meu canivete, tratei de agarrá-lo para não fazer a viagem a olhar para o céu e a banzar. Acha que obrei mal?

—Não, senhor, protestou o moço com afabilidade. Muito lhe agradeço a intenção. Assim alcançarei sem cansaço o Leal, onde pretendo dar hoje com os ossos.

—Oh! exclamou o outro todo expansivo, a caminhada é a mesma. Pois, meu rico senhor, eu moro a meia légua do Leal, torcendo a esquerda e se vosmecê não tem compromissos lá com o homem, far-me-á muito favor agasalhando-se em teto de quem é pobre, mas amigo de servir. Minha tapera é pouco retirada do caminho, e quem vem montado como o senhor, não tem que andar contando bocadinhos de léguas.

Convite tão espontâneo e amável não podia deixar de ser bem aceito, sobretudo naquelas alturas, e trouxe logo entre os dois caminhantes a familiaridade que tão depressa se estabelece em viagem.

—Com toda a satisfação irei parar em sua casa, retrucou o jovem. Nunca vi o Leal, pois agora é a primeira vez que cruzo este sertão, e ando de pouso em pouso, pedindo um cantinho de paiol ou de rancho para passar a noite com os camaradas meus.

Traz então tropa?

—Tropa, não; apenas dois bagageiros que vêm com as minhas cargas e uma besta à destra.

—Olá! o amigo viaja à fidalga, observou o mineiro com gesto folgazão.

—Qual!... Bastantes privações tenho já curtido.

—Decerto não as sentirá em nossa casa todo o tempo que lá quiser ficar. Não encontrará luxarias nem coisas da capital, unicamente o que pode ter nestes mundos: quatro paredes de pau-a-pique mal rebocadas, uma cama de vento, bom feijão a fartar, ervas a mineira, arroz de papa, farinha de milho torradinha, café com rapadura e talvez até um lombo fresco de porco.

—Olá! exclamou o moço rindo-se com expansão, vou passar vida de capitão-mor. Não queria tanto, bastava-me...

—O que sobretudo desejo é que tenha comigo o coração na boca. Se não gostar do passadio, vá logo desembuchando. Na minha rancharia pousa pouca gente, porque fica para dentro da estrada... assim, talvez lhe falte alguma coisa; em todo o caso farei pelo melhor ...

Depois de breve pausa, continuou:

—Mas porém, creio que já é ocasião, agora que nos conhecemos como dois amigos do tempo do Rojão, saber com quem lidamos. Eu, quanto a mim, me chamo Martinho dos Santos Pereira e a minha história conto-lha em duas palhetadas... Sua graça, ainda que mal pergunte ?

—Cirino Ferreira de Campos, respondeu o outro viajante, um criado para o servir.

— Obrigado, agradeceu Pereira inclinando-se cortesmente e levando a mão ao chapéu. Como lhe disse há pouco, minha historia é história de entrar por uma porta e sair por outra. Minha gente não é de má raça, pelo contrário; meu pai, que Deus lhe dê a glória, possuía alguma coisa de seu e deixou aos seus muitos filhos um nome limpo e respeitado. Cada qual de nós-éramos sete-tomou o seu rumo. Quanto a mim, casei muito mocinho e fui morar na Diamantina, onde abri casa de negócio. Depois de alguns anos, uns bons, outros caiporas, morreu minha dona e mudeime, a principio, para Piumi e mais tarde para Uberaba. A vida começou a desandar-me de todo, e fiz logo este cálculo: estar tão longe, antes afundar-me no mato de uma boa feita. Vendi minha lojinha de ferragens e internei-me até cá com três escravos. lá doze anos que moro nestes socavões e, palavra de honra, até ao presente não me tenho arrependido. Na minha situação há fartura, e louvado seja! nunca passei necessidade... Não posso por isto queixar-me sem ingratidão. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do despotismo de misérias, que vai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto é bom... Diga-me, porém, uma coisa: vosmecê para onde se atira?

—Homem, Sr. Pereira, não tenho destino certo.

—Deveras? Então está caminhando à toa?

—Eu ponho-lhe já tudo em pratos limpos. Ando por estes fundões curando maleitas e feridas brabas.

—Ah! exclamou Pereira com manifesto contentamento, vosmecê é doutor, não é? Físico, como chamavam os nossos do tempo de dantes.

—É fato, confirmou Cirino com alguma satisfação.

—Ora, pois, muito bem, cai-me a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar... a talhe de foice.

—Por quê?

—Daqui a pouco saberá... Mas, diga-me ainda... Onde é que vosmecê leu nos livros, aprendeu suas histórias e bruxarias? Na corte do Império?

—Não, respondeu Cirino, primeiro no Colégio do Caraça; depois fui para Ouro Preto, onde tirei carta de farmácia.

E acrescentou com enfatuação:

—Desde então tenho batido todo o poente de Minas e feito curas que é um milagre.

—Ah! a sabença é coisa boa... eu também tinha jeito para saber mais do que ler e escrever, isto mesmo malmente; mas quem nasceu para carreiro, vira, mexe, larga e pega, sempre acaba junto ao carro. Com o que, entonces, vosmecê entende de curar?...

—Entendo, afirmou Cirino sem o menor constrangimento.

—Pois caiu-me muito ao jeito na mão; sim, senhor. Estou com uma menina doente de maleitas, minha filha, e por essa causa tinha ido a Sant'Ana buscar quina do comércio; mas lá não havia da maldita e voltava bem agoniado. Ora...

—Trago, interrompeu o outro, muito remédio nas minhas malas. Para sezões, tenho uma composição infalível...

— Já se sabe; entra composição de quina. Deveras é santa mezinha. A pequena tomou a do campo; mas essa pouco talento tem, de maneira que a sezão não lhe deixou o corpo.

—Há quantos dias apareceu o tremor de frio? perguntou o intitulado doutor.

—Faz hoje, salvo engano, dez dias. Até agora era uma rapariga forçuda, sadia e rosada como um jambo; nem sei até como lhe entrou a maleita no corpo. Ninguém pode fiar-se na tal Vila de Sant'Ana; é uma peste de febres. Eu bem a não queria levar até lá: mas ela pediu tanto que consenti! Demais como era para ver a madrinha, uma boa senhora, de muita circunstância, a mulher do Major Toques. .. Não conhece?

—Pois não.

—E dá-se com o major? perguntou Pereira para abrir novo campo à garrulice.

—Quando pousei na vila, estive com ele.

—E não gostou? Aquilo sim é homem às direitas. Também é pau para toda a obra na Senhora Sant'ana, é o tatu de lá. Em querendo taramelar um pouco mais a meu gosto, busco o compadre. Isto arma logo uma conversa que me dá um fartão... E depois pessoa de muitas letras... Escreve ao governo; é juiz de paz, major reformado, serve de juiz municipal, já fez a campanha dos Farrapos lá no Rio Grande do Sul para as bandas dos Castelhanos e merece muita estimação. Mora numa casa de andar e tem loja muito sortida, por sinal que bem baratinha para a distancia. E as histórias que conta?É um nunca acabar. O homem parece que sabe o Império de cor e salteado! Nem o vigário! Olhe, Sr. Cirino, vou dizer-lhe uma coisa, que talvez lhe pareça embromação: às vezes dou um pulo até a vila só para bater língua com o major, porque com esta gente daqui não se tira partido: escorraçada e arisca que é um Deus nos acuda! Então, como lhe ia contando, galopeio até lá, e pego numa mapiagem que me enche as medidas. Não há...

—Gabo-lhe a pachorra, atalhou Cirino. Mas, diga-me, Sr. Pereira; farei por aqui algum negócio?

—Homem, conforme. Gente doente é mato; mas também mofina como ela só. Meio arredado da minha casa, fica o Coelho que está morre não morre há muitos anos, e é homem de boas patacas. Este, se vosmecê o curar, talvez caia com os cobres. Tudo o mais é uma récula de gente mais ou menos.

—Vosmecê traz bastante quina do comércio? perguntou em seguida.

—Trago, respondeu Cirino, mas é cara.

—Que é cara, bem sei. Pois é quanto basta, porque no fundo aqui tudo são sezões.

Começou então o bom do sr. Pereira a desenrolar as diversas moléstias que o haviam salteado no correr da vida, raras na verdade, mas todas perigosas; e com este tema às ordens achou meios e modos de falar até quase perder o fôlego.

Recolheu-se o outro ao silencio e ouviu talvez preocupado, ou em todo caso, muito distraidamente, o que lhe contava o seu novo amigo, saindo, de vez em quando, da apática atenção para instigar com a voz e o calcanhar a cavalgadura, quando esta parecia querer por si tomar descanso ou buscava comer os rebentões mais apetitosos do capim a grelar.

Afinal notou Pereira o tal ou qual abatimento do companheiro.

—Vosmecê a modo que está triste? disse ele. Deixou alguma coisa de seu lá por trás?

—Homem, para ser franco, respondeu Cirino dando um suspiro, deixei; e essa coisa é uma dívida... de jogo.

—Isto é mau, retrucou o mineiro, fechando um tanto a cara. Por causa desse vicio e das mulheres, é que as cruzes nascem à beira das estradas. Mas é coco grosso?

—Trezentos mil-réis.

—Já é gimbo graúdo. E com quem jogou?

—Com o Totó Siqueira, de Sant'Ana. Por isto pretendeu atrasar-me a viagem; mas prometi mandar-lhe tudo do Sucuriú por um camarada e passei-lhe um papel. No que estou pensando, e se acharei até lá meios de cumprir a palavra.

—Se lhe pagarem como devem, com certeza. Em todo o caso aperte um pouco com os doentes.

—Não imagina, replicou Cirino com verdadeiro sentimento, quanto me tem amofinado essa maldita dívida. Não pelo dinheiro, que dele faço pouco caso; mas por ter pegado em cartas, coisa que nunca tinha feito na minha vida; isto sim...

—Pois meu rico senhor, prosseguiu Pereira, sirva-lhe esta de lição e tome tento com a gente do sertão, não com esses que moram -nas suas casas, sossegados e amigos de servir, mas com viajantes, homens de tropas e carreiros. Isso sim, é uma súcia de jogadores, que andam armados de baralhos e vísporas e, por dá cá aquela palha, empurram uma faca na barriga de um cristão ou descarregam uma garrucha na cabeça de um companheiro, como se fosse em melancia podre. Depois, o demônio do jogo, quando entra no corpo de um desgraçado, faz logo ninho e de lá pincha fora a vergonha. Da má vida com raparigas airadas, fadistas e mulheres à toa, ainda a gente endireita; mas com cartas e sortes, só na caldeira de Pedro Botelho é que se cuida em mudar de rumo. Quem lhe fala, teve um tio morador nas Trairás, para cá de Camapuã cinco léguas, que trabalhava todo o ano na terra para vir jogar até perder o último cobre nas rancharias do Sucuriú.

Pereira, de posse de tão largo assunto, contou mil historias, umas lúgubres, outras jocosas, verídicas, inventadas na ocasião ou reproduzidas.

Haviam, no entretanto, os dois caminhado bastante. Inclinara-se no horizonte o sol, e a brisa da tarde já vinha soprando do lado do poente, viva, perfumosa.

—Nós, observou o mineiro, com a nossa conversa deixamos os nossos animais vir cochilando. Também já está aqui a minha estradinha. Meta-se nela, Sr. Cirino; em frente ia parar no Leal: minha fazendola começa

neste ponto à beira do caminho e vai por aí afora ate bem longe, um mundo de alqueires de terra que nem tem conta.

Ao dizer estas palavras, tomou ele a dianteira e dando a direita à estrada geral, enveredou por uma aberta larga e muito sombreado que levava com voltas e tortuosidades à margem rasa de copioso e límpido ribeirão, de álveo areento, todo ele. Que sítio risonho, encantador, esse, ensombrado por majestosa e elegante ingazeira, toda pontuada das mimosas e balsâmicas florezinhas!

Os animais, ao perceberem o bater da água, apertaram o passo e, entrando na fresca corrente quase até aos peitos, estiraram o pescoço e puseram-se a beber ruidosamente, avançando aos poucos de encontro ao fio caudal, para buscarem o que houvesse mais puro em linfa.

—Não deixe a sua besta se empanzinar observou Pereira. Upa! continuou ele puxando pela rédea do cavalo e batendo-lhe amigavelmente na pá do pescoço, upa, Canivete! Vamos matar a fome no milho!

Transposto o ribeirão, alargava-se a vereda e, depois de cortar copada mata, abria-se numa verdadeira estrada, que os dois cavaleiros tomaram a meio galope.

Transmontava afinal o sol, quando, além de ralo matagal, surgiu a ponta de um mastro de São João, que o mineiro saudou com mostras de grande alegria, como sinal precursor da querida vivenda.

Antes, porém, de nela penetrarmos, digamos quem era aquele mancebo que viajava ornado do pomposo título de doutor, e, que mais é, aplicando remédios e preconizando curas milagrosas.

Capítulo III: O doutor

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Semeai promessas: a ninguém causam desfalque, e o mundo é rico de palavras. A esperança quando outros nela crêem faz ganhar muito tempo.

Ovídio, A Arte de Amar

Ao morreres, dota a algum colégio ou a teu gato.

Pope

Sganarelo._- De todo a parte vem gente procurar-me, e se as coisas continuarem assim, sou de parecer que de uma vez devo dedicar-me à medicina . Acho que de todos os ofícios é este o preferível, porque, ou se faça bem ou mal, sempre no fim há dinheiro.

Molière, O Médico à Força.

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Nascera Cirino de Campos, como dissera a Pereira, na província de São Paulo, na sossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qual demora umas 50 léguas do litoral. Filho de um vendedor de drogas, que se intitulava boticário e a esse oficio acumulava o importante cargo de administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até a idade de doze anos completos, quando fora enviado, em tempos de festas e a título de recordações saudosas, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro Preto.

Esse parente, solteirão, de gênio rabugento, misantropo, e dado às práticas da mais extrema carolice, recebeu o pequeno com mau modo e manifesto descontentamento, tanto mais quanto à presença de um estranho vinha interromper os hábitos de completa solidão a que se acostumara desde longos anos.

Era homem que trajava ainda à moda antiga, usando de sapatos de fivela, calções de braguilha, e cabeleira empoada com o competente rabicho.

A sua reputação de pessoa abastada era, em toda a cidade de Ouro Preto, tão bem firmada quanto a de refinado sovina, chegando a voz público a afirmar que o seu dinheiro, e não pouco, estava todo enterrado em numerosos buracos no chão da alcova de dormir.

—Meu amigalhote, disse o tal padrinho a Cirino, poucos dias depois da chegada, fique sabendo que por qualquer coisinha lhe sacudo a poeira do corpo. Dê-se por avisado e ande direitinho que nem um fuso.

O menino, transido de medo, passou a tarde a chorar num canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir o sono, a alegre vida de outrora, os folguedos que fazia com os camaradas na viçosa relva do Cruzeiro, à entrada da Vila de Casa Branca e sobretudo os carinhos da saudoso mamãe.

Em seguida àquela admoestação preventiva fora o tio à casa de uns padres que tinham influência na direção do Colégio do Caraça e com eles arranjara a admissão do afilhado naquele estabelecimento de instrução.

Como finório que era, conseguiu este resultado sem multa dificuldade, pagando-o, a juros compostos, com tentadoras promessas.

—Por ora, resmoneou ele, nada poderei fazer pela educação do rapaz; mas... enfim... um dia... estou já velho, e tratarei de mostrar que não me esqueci dos bons padres que tanto me ajudam hoje.

Lançada, assim, a eventualidade de uma verba testamentária, ficou decidida a entrada de Cirino na casa colegial.

O pressentimento da falta de proteção natural torna as crianças dóceis e resignadas. Também não tugiu nem mugiu o caipirazinho ao penetrar no internato em que devia passar tristonhamente os melhores anos da sua adolescência.

Ótimo negócio fizera incontestavelmente o velho tio. Ia tão-somente desembolsando boas palavras e, por estar agarrado à vida, chegou até a levar ao cemitério dois dos padres que se haviam prendido às esperanças de valiosa recordação.

Afinal como tinha por seu turno que pagar o tributo universal, um belo dia morreu quando menos se esperava, deixando muito recomendado um seu testamento, que foi, com efeito, aberto com sofreguidão digna de melhor êxito.

Testamento havia, força é confessar; não já testamento, mas extenso arrazoado todo da letra do velho; barras de ouro, porém, ou maços de notas, nem sombra.

Esfuracou-se a casa de alto a baixo, levantaram-se os soalhos, escutaram-se todas as paredes, quebraram-se os móveis; nada apareceu, nada denunciou esconderijo de riquezas, nem coisa que com isso se avizinhasse.

Descobriu-se então que aquele carola fora um pensador desabusado, antigo admirador de Xavier, o Tiradentes, que nunca tivera vintém e vivera como filósofo, grazinando lá consigo mesmo, de tudo e de todos.

Era o seu testamento uma gargalhada meio de gosto, meio de ironia, atirada de além-túmulo e corroborada pelo legado sarcástico que em pomposo codicilo fazia aos padres do Caraça da sua biblioteca a fim, dizia ele, de ajudar a educação dos mancebos e auxiliar as boas intenções dos seus honrados e virtuosos diretores.

Procuraram-se os tais livros, e topou-se com um baú cheio de obras, em parte devoradas pelo cupim, que foram, incontinenti, entregues às chamas de um grande auto-de-fé. Eram as Ruínas de Volney, 0 Homem da Natureza, as poesias eróticas de Bocage, o Dicionário filosófico de Voltaire, o Citador de Pigault-Lebrun, a Guerra dos Deuses de Parny, os romances do marquês de Sade e outras produções de igual alcance e quilate, algumas até em francês, mas anotadas por leitor assíduo e mais ou menos convencido.

A conseqüência desse pesado gracejo póstumo, que destruía de raiz o conceito de uma vida inteira, foi a imediata exclusão de Cirino do Colégio do Caraça.

Tinha então dezoito anos, e, como era vivo, conseguiu, apesar da natural pecha que lhe atirava o parentesco com o estrambótico e defunto protetor, ir servir de caixeiro numa botica velha e manhosa, onde entre drogas e receituários lhe foram voltando os hábitos da casa paterno.

Leve era o trabalho, e o aviamento de prescrições tão lento, que os ingredientes farmacêuticos ficavam meses inteiros nos embaçados e esborcinados frascos à espera de que alguém se lembrasse de tirá-los daquele bolorento esquecimento.

Em localidade pequena, de simples boticário a médico não há mais que um passo. Cirino, pois, foi aos poucos, e com o tempo, criando tal ou qual pratica de receitar e, agarrando-se a um Chernoviz, já seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de quem se utilizasse dos seus serviços.

Nessas curtas digressões principiou a receber o tratamento de doutor. Então para melhor o firmar, depois de se ter despedido da botica em que servia, matriculou-se na escola de farmácia de Ouro Preto com a intenção de tirar a carta de boticário, que o Presidente de Minas Gerais tem o privilégio de conferir, dispensando documentos de qualquer faculdade reconhecida.

Antes, porém, de conseguir a posse daquele lisonjeiro documento, fez-se Cirino, num dia de capricho, de partida decidida e começou então a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo outros que a experiência lhe ia indicando ou que a voz do povo e a superstição lhe ministravam.

Toda a sua ciência assentava alicerces no tal Chernoviz. Também era o inseparável vademecum; seu livro de ouro; Homero à cabeceira de Alexandre. Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos.

Contém Chernoviz, dizem os entendidos, muitos erros, muita lacuna, muita coisa inútil e até disparatada; entretanto no interior do Brasil é obra que incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força de evangelho.

Conhecia Cirino o seu exemplar de cor e salteado; abria-o com segurança nos trechos que desejava consultar e graças a ele formara um fundo de instrução real e até certo ponto exata, a que unirá o estudo natural das utilíssimas e ainda pouco aproveitadas ervinhas do campo.

A fim de aumentar os seus recursos em matéria médica vegetal, foi a pouco e pouco dilatando as excursões fora das cidades, para as quais voltava, quando se via falto de medicamentos ou quando, digamo-lo sem rebuço, queria gastar nos prazeres e folias o dinheiro que ajuntara com a clínica do sertão.

Afinal, afeito a hábitos de completa liberdade, resolvera empreender viagem para Camapuã e sul de Mato Grosso, não só com o intuito de estender o raio das operações, como levado do desejo de ver terras novas e longínquas.

Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda a parte granjeando o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, titulo inerente a sua pessoa e a que tinha incontestável direito.

Bem formado era o coração daquele moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no intimo do seu caráter se haviam insensivelmente enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência cientifica, como da roda em que sempre vivera.

Afastava-se em todo caso, ainda assim com os seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do sertão, tipos que se encontram freqüentemente naquelas paragens, eivados de todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias completamente excepcionais.

Por toda a parte entra, com efeito, o doutor; penetra no interior das famílias, verdadeiros gineceus; tem o melhor lugar a mesa dos hóspedes, a mais macia cama; é, enfim, um personagem caído do céu e junto ao qual acodem logo, de muitas léguas em torno, não já enfermos, mas fanatizados crentes, que durante largos anos se haviam medicado ou por conselhos de vizinhos ou por suas próprias inspirações e que na chegada desse Messias depositam todas as ardentes esperanças do almejado restabelecimento.

Capítulo IV: A casa do mineiro

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