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O Autor

Amanhã

O Barão de Lavos

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O Autor

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Abel Botelho nasceu em Tabuaço, pequena vila da Beira Alta, a 23 de Setembro de 1854, e faleceu em Buenos Aires, como ministro da República Portuguesa, em 1917. Frequentou o Colégio Militar. Iniciando-se na carreira das armas como simples soldado raso, foi galgando os mais altos postos do Exército, tendo chegado a coronel. Entre outras funções, exerceu a chefia do Estado-Maior da Primeira Divisão Militar. Pertenceu a várias agremiações (Academia das Ciências, Associação dos Jornalistas e Escritores Portugueses, de Lisboa e do Porto, Associação da Imprensa, Sociedade Geográfica de Lisboa, etc.), e foi como um dos delegados dessa última agremiação que esteve em São Paulo, em 1910, por ocasião de um congresso de Geografia. Em 1911 é nomeado embaixador em Buenos Aires, onde falece em 1917, cargo de grande importância pois a Argentina foi o primeiro país a reconhecer a República Portuguesa após a instauração republicana em 1910.

Sua carreira literária, começou-a em 1885, com um livro de versos chamado Lira Insubmissa.

No ano seguinte, lança Germano, drama em cinco actos, em verso. Proposta à direcção do Teatro Nacional, esta peça foi recusada. Originou-se uma polémica, por causa do artigo que Abel Botelho dirigiu aos responsáveis pela sua não aceitação. Daí em diante escreverá outras peças de teatro: Jacunda (comédia em três actos; 1895), Claudina (estudo duma neurótica; comédia em três actos, representada no Teatro do Príncipe Real de Lisboa, na festa artística da actriz Lucinda Simões, a 18 de Março de 1890), Vencidos da Vida (peça satírica, representada a 23 de Março de 1892 no Teatro do Ginásio; três actos), Parnaso (peça lírica, em verso, em um acto, escrita para a récita de estudantes, em benefício da Caixa de Socorros a Estudantes Pobres, realizada no Teatro de São Carlos, em 3 de Maio de 1894), Fruta do Tempo (comédia, escrita para a actriz Lucinda Simões; 1904). Sendo de assunto em geral escabroso, delicado, como pedia o Naturalismo, essas peças causavam agitação, especialmente Imaculável, que terminou em arruaças e apupos, e Vencidos da Vida, que não pôde prosseguir em cena pelo que continha de crítica ao grupo literário com o mesmo nome, e por ser considerada imoral, criando-se uma polémica entre Abel Botelho e os responsáveis pela proibição.

Em 1891, Abel Botelho inicia o estudo da sociedade portuguesa na série "Patologia Social", que deveria ser o exame exigente e científico dos males gerais que infestavam Portugal, sobretudo Lisboa, capital e centro urbano de maior prestígio. O primeiro é O Barão de Lavos (1891), o primeiro romance em português com um enredo homossexual. Seguiu-se-lhe O Livro de Alda (1898), Amanhã (1901), Fatal Dilema (1907), Próspero Fortuna (1910). Além desses, deixou mais três romances: Sem Remédio... (1900), Os Lázaros (1904), e Amor Crioulo (incompleto e póstumo; seu título anterior era Idílio Triste; 1919) e o livro de contos Mulheres da Beira (1898; anteriormente publicados no "Diário de Notícias", entre 1895 e 1896, e que serviu de inspiração para o filme homónimo de 1921). Também colabora em diversas publicações periódicas, nomeadamente nas revistas Brasil-Portugal  (1899-1914), Serões  (1901-1911), Azulejos  (1907-1909) e Atlântida (1915-1920).

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Amanhã

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I

Essa ceia está pronta? — perguntou enfastiado o Serafim, cuja figura esgalgada e curva, tendo vencido o último degrau da escada, assomava oscilando à porta da cozinha.

— Há que tempos! — respondeu-lhe, sem o olhar, uma mulherita atarracada e bruna, que no vão da chaminé, à esquerda da porta, mesmo junto à esquina, de candeia suspensa da mão esquerda mexia um tacho de barro fumando sobre e fogareiro.

— Bem... vamos então a aviar! — comandou o operário, numa leve impaciência, atirando o corpo descadeirado e longo para cima de um mocho de pinho, de encontro à mesa, do outro lado da porta de entrada, e projetando o chapéu com arremesso.

— É para já! — acudiu de salto a mulher, enquanto lhe vinha perto pendurar a candeia, de um grande prego enferrujado. A seguir, foi à chaminé, voltou, e fitando agora firme o Serafim, inquiria, com um significativo ar, quando na frente lhe punha, sobre a gordura gretada das tabuas ressequidas, o tacho fumegante: — Vens-lhe com gana hoje?

— Mas gana de quê?... — logo repontou o Serafim, enviesando malevolamente os olhos.

— Ora de que há de ser?... De tasquinhar. E ainda bem!

Dizendo, a ladina da Clara rodopiava ligeira no acanhado aposento, descendo do armário e dispondo na mesa dois pratos de barro, singelamente vidrados a branco e a sua franja de azul nos bordos, depois colheres e garfos de chumbo, pão, um pires esbeiçado com azeitonas. E então, com o mesmo ar finório, as costas da mão sobre a mesa:

— A não ser que tu... sim... lá tenhas outro sentido. — A cara patibular do Serafim torcia-se num sorrisinho implicante. E a mulher a insistir: — Não sei o que te acho! Estás-me assim a modo campeiro...

— E tu estás muito doutora...

— Cada um é como Deus o fez...

— Senta-te! — gritou com ímpeto o Serafim, fuzilando-lhe um relâmpago de cólera na abaçanada frouxidão dos olhos. E arrastou ainda, numa sorna de ameaça: — Nós temos festa... — Depois imperiosamente a repetir: — Então!?

Ao que a mulherita prontamente obedeceu, trazendo cadeira para junto do seu homem, e dando-lhe ao sentar-se um amorável repelão no braço:

— Mostrengo!

Mas, insensível, o Serafim lançava do tacho para o prato e sorvia automaticamente, sem vontade, sem prazer, uma negra e triste aguadilha, mosqueada de olhitos de azeite, condensando na frialdade do ambiente um vapor nauseabundo, e de cuja dessorada fluidez a quando e quando emergia a ironia cortical de um feijão, ou a coriácea insipidez de alguma couve saloia da sua banda a Clara imitava-o, atacando também, mas de longe, como quem se despacha de uma fastidiosa obrigação, o sujo tacho requeimado; e para isto estendia o braço direito, todo longo, e sobre o antebraço esquerdo em repouso tinha o avental colhido no regaço.

Então, durante alguns minutos, num silêncio ao mesmo tempo desalentado é ávido, em alternativas cruéis de voracidade e fastio, de anorexia e de fome, trataram os dois de filosoficamente iludir a sua irremediável condição de insaciados. A boa da Clara, se por acaso a sua colher extraía do tacho algum feijão mais inteiro, algum torrãozito mais tenro, ia e deitava-os, com amorosa isenção, no prato do companheiro, que, insensível e cabisbaixo, sorvia sempre a insulsa mistela, com ruído. Projetada de alto, a luz incerta e lívida da candeia prolongava-lhes as magoadas figuras num destaque violento e enternecido. Eram bem duas criaturas de azar, dois enjeitados da sorte, derreados a poder de privações e sofrimento, — ele com c? Longo dorso alcachinado, onde, escorchadas com anatômico rigor, as omoplatas cavavam esqueléticas sombras, e com os braços moles, escalavradas, roxas as mãos, a face estirada e verde; ela com as suas espáduas muito redondas, a sua cor ardente de canela e a vida arrogante dos seus olhos lutando ainda contra a consumpção, cujo triunfante estrago se acusava já bem palpável na ósseo apontar das articulações, nos grandes seios sem voo, nas miuditas rugas precoces e no fundo bistre das olheiras. A luz titubeante da candeia estirava num realce cruel todos estes sinais patentes de ruína; e afusando ao alto seu grosso penacho de fumo, passeava em volta caprichosos cancãs de sombras pela nua desolação das paredes encardidas. A mobília era rudimentar: alguns mochos claudicantes, uma grande mala de pau, duas cadeiras estripadas. À ilharga da mesa onde os dois comiam, via-se uma porta entreaberta, dando para qualquer repartimento interior. Na parede ao lado, fronteira à porta por onde o Serafim entrara, havia uma outra mesa, com gavetas, igualmente de pinho, igualmente suja, também por igual flanqueada por uma portita ao lado; na parede seguinte, notava-se um armário, uma janela, e a para a junto da chaminé. Ao alto, no estuque fumarento do teto, dançavam sanefas de teias de aranha, prenhes de pó, e negrejava, por milhares, um constelado planisfério de dejeções de moscas. Da cornija da chaminé para a quina oposta, suspensa em diagonal, bamboava uma corda com roupa. E na janela que dava para o quinteiro, junto da lareira, vinham de espaço a espaço, vergados pelo vento, esqueletos de árvores arranhar os vidros fuliginosos.

Quando terminava, um calafrio correu o corpo fruste do Serafim, que, aconchegando com as duas mãos a jaleca, lamuriou:

— Sempre está um raio de um tempo!

— Chove?

Não, agora não... Mas debaixo, do rio, vêm um barbeirinho de respeito!

— Pois, olha, eu estou com calor! — retorquiu-lhe num jeito agreste a companheira, erguendo as duas mãos também ao cabeção do chambre de chita, de miuditas ramagens, que desabotoou e esgorjou, num assoprado alívio.

— Tens calor?... Eu logo vi... Quem te coçasse bem, minha cabra!

— Estás tolo! — contestou, a fazer de agastada, a Clara, acudindo com outro significativo beliscão, e este na coxa, do Serafim, a quem encarou com lascívia.

Mas ele, sem a ver, arredando o prato:

— Que mais há?

— Mais?... Só se for o resto dos carapaus do jantar.

— E louvar a Deus, hein?... — comentou o Serafim, numa dolorosa ironia.

— Então?... — fez a mulher, encolhendo num protesto de inocência os ombros.

— Ora valha-te o demo!

— Meu rico! Não estamos em tempo de milagres... Ora essa... Muito faço eu!

— Bem, bem... Venha de lá o que houver!

Aplacada, a Clara tirou a si a gaveta da mesa e sacou de dentro, postos a monte sobre um número amarrotado do Século, uma meia dúzia de carapaus fritos. Espalmados, moles, tinham um aspecto repugnante, escabiosos de purulências brancas, nadando numa suja e crassa oleosidade, que repassava ao papel em aréolas negras. Não obstante, resignadamente, o Serafim tomou um e levou-o de manso com as mãos aos dentes, ao tempo que sobre a mesa procuravam o que quer que fosse com sofreguidão os seus olhos desvairados.

— Clara! O que falta aqui?...

A rapariga, imóvel, não respondeu.

— Não ouves?

— Sou de gesso... — respondeu ela, conciliadora, ensaiando sorrir. Ele porém volveu, ameaçador:

— Tu queres que eu te apalpe!

Ao que a Clara, numa revolta, erguendo-se:

— Ai, ai, ai!... A modos que vens hoje com muita fajeca... Pois fica sabendo que não me metes medo nenhum!

— Dá-me vinho, Clara! — insistiu de sobrecenho, numa aparente serenidade, o Serafim.

— Não há...

— Pois vai por ele!

— Aonde?...

Aqui o Serafim, rota a paciência, ergueu-se de salto, com estrondo, e atenazando com força, numa grande osga malfazeja, os pulsos da mulher:

— Vais ou não vais?... — Depois, numa crescente onda de raiva, mandou-lhe a mão estendida contra a face, o que a fez ir de recuo até à chaminé, cambaleando. — Raios te partam!

— Bruto! Animal! Não tenho medo, não... Ainda que me mates! — gaguejou Clara, esbraseada, ofegante, com as mãos pendulando em assomos de vingança e os olhos enresinados. — É este o pago que você me dá?... Estes homens!... Sim, porque você está farto de saber que eu, se lhe nego o vinho, é para seu bem... é pro não ver mais estragado do que você já está, seu traste!

— Lérias! — comentou cinicamente, de olhos no chão, o Serafim.

Veio de dentro, pela porta da direita, um choro alto de criança. E a

Clara, agora já com uma leve tinta amorável na expressão:

— Você bem sabe o mal que o vinho lhe faz.

— Quando é demais...

— Não que tu não te contentas com pouco! Puseste-te fresco!...

Deixaste esse vício tomar-te posse do corpo, de sorte que agora, em vez de reconheceres o bem que te fazem, qual história! Ainda em cima refilas... Lambada para cima! São todos assim... E eu é que sou tola... É bem feito! Que eu devia mas era deixá-lo a você enfrascar-se à vontade... e depois, se o diabo te levasse... ora! Mais depressa me via livre de ti.

— Clara! Clara! Não mo atentes mais...

— Que demônio de chinfrim é este?... — acudiu de relance, apontando da porta da direita, uma rapariguita aganada e débil, ruço o cabelo, os ombros ladeiros, o peito raso, mal agouradas hepatizações na face, e uma bondade escampe água tintada na garça translucidez dos olhos. — Cá estão vocês outra vez pegados! Ora, ora... Acordaram-me a pequena... Valha-as Deus!

Dizendo, avançara a enlaçar Clara afetuosamente, enquanto num piedoso olhar de reprimenda continha em respeito o Serafim.

— Ó Sra. Ana, — acudiu logo este, embrulhando a fala, meio vexado, — veja vossemecê se isto não é de razão?... Este raio apura-me a paciência!

E insofrida a Clara:

— Ó Deus do céu! Mas que homem...

— Mas então que foi?... — disse Ana com doçura.

— Então não se lhe meteu agora em cabeça a este diabo acostumar-me a que eu coma sem beber! — voltou à carga, adiantando-se, o Serafim.

Encarando alternamente os dois, numa amorável censura, numa carinhosa visagem maternal. Ana sorria... Da mesma porta por onde ela entrara, uma pequenita dos seus cinco anos veio agora e num timorato jeito, abrindo de pavor os olhos, afogou-lhe o rosto na saia, com os dedos muito agarrados. Protetoramente, a Ana baixou a mão a afagar-lhe os cabelos de ouro. Entretanto o Serafim, forte na sua implacável rezinga, disse:

— Chega um homem ralado, moído de trabalho... e é isto! Em vez do descanso de que tanto precisa, vai e fazem-lhe um inferno!

E num descoroçoamento infantil, baixando a cabeça e abatendo os ombros, de novo amarfanhou o descadeirado arcabouço sobre o mocho, ao canto, junto da mesa.

Então a Clara, vendo que se havia dissipado a tempestade, afastou-se da vizinha, e, suasiva, amigável, tratou de explicar:

— Ó homem! Mas se eu já te disse... agora, ainda que te quisesse dar vinho, não o tenho! — Lá do seu canto, o Serafim teve um gesto incrédulo. — Não tenho! Palavra...

Correu ao armário, e sacolejando bem no espaço e voltando de gargalo ao fundo, uma após outra, quantas garrafas aí tinha:

— Vês?... Nem pinga!

Ante a irrecusável evidência, subjugado, o Serafim dobrou mais a espinha e sobre a comissura da boca o bigode fino e ralo estirou-se-lhe, num desalento.

Mas providencialmente aqui acudiu a Ana. Foi despedida ao seu armário, junto à janela, com a filhita presa sempre à saia; tomou de uma prateleira uma garrafa com vinho; e prantando-a em cheio, com um copo, na mesa em frente do Serafim: — Lá por isso não seja a dúvida! Pronto! Têm aqui do nosso.

Ao ver assim de improviso, diante de si, o cubicado, o imprescindível licor, o derreado tanoeiro aprumou-se, mordido de uma comoção galvânica. Logo as mãos avançaram a tatear a garrafa,

numa desconfiança, enquanto se lhe esbugalhavam, muito secos do prazer, os olhos, e com a língua a crescer dentro dos beiços ávidos, mal conseguia entaramelar:

— Ob... obrigado, vizinha! — Depois, achincalhadoramente, para Clara: — Toma conta, vês?... Isto sim! Isto é que é mulher...

Numa passiva desaprovação, a Clara, em pé contra a parede, cruzara os braços no regaço. E o Serafim, depois que bebeu o primeiro copo, num indizível bem-estar, consolado e tranquilo, perguntou:

— Então esse Esticado ainda não veio?...

— É verdade... — respondeu Ana, contrafeita. — Muito longe se lhe fez hoje o largo do Açúcar!

Ao tempo, uma furiosa rajada de vento, prestes a apagar a candeia, irrompeu da porta da escada, aberta, e silvou pelas frinchas mal vedadas; e logo uma violenta corda de água fustigava através os vidros da janela e tamborinava fora, na claraboia, com estrondo.

— Ena, como chove! — exclamou Clara.

— Assim, como há de ele romper?... — acrescentou Ana, abrindo compassivamente os olhos.

— Safa! É isto que veem! — vociferou então, esbofado e entrando de ímpeto, o Esticado, um belo e forte rapaz, alto e moreno, cabelo crespo, narinas fogosas, farto bigode negro, sólido o tronco nas pernas robustas. — Raios parta minha vida!

— Ai! Filho... — lamentou Ana, erguendo as mãos. — Vens uma sopa!

— Tira-te, que te encharcas... — volveu meigo o mocetão para a filhita, que tinha ido carinhosa enlaçar-se-lhe às pernas. E, com ela pela mão, avançou à porta da direita.

Vinha literal mente a pingar. No ponto do soalho onde parara um momento, negrejava uma poça de água. A boina cinzenta, a blusa de

ganga azul e por baixo desta a camisola de lã, as mesmas calças de riscado, empapadas e moles, modelavam-lhe a musculatura com vigor. Luzidio e fresco, parecia o bigode camarinhado de pérolas.

— Olha do que eu me livrei! — murmurou regalado o Serafim. E o Esticado, já conformado e risonho:

— Isto em mim é a pouca sorte!

— Avia-te! — gritava-lhe a mulher, de dentro, no compartimento da direita.

O Esticado seguiu logo. — Era uma pequena sala, asseadita e quadrada, rudimentarmente lambuzada a vermelho, com duas janelas abrindo para à rua. O melhor compartimento da casa. Lisas cortinas de cassa branca resguardavam as vidraças. Acusava bem o soalho, na sua cor açafroada e macia, o uso constante da potassa. À esquerda de quem entrava, via-se uma porta de alcova, e, a seguir, a indispensável cômoda de pinho envernizado, com a sua toalha de chita com folho; em cima, um candeeiro a petróleo, de latão, aceso, duas jarrinhas de vidro azuloio com flores de papel, várias bugigangas de cartão, um cesto de costura, e um espelhito de moldura dourada oblíquo contra a parede, da qual pequenas fotografias pendiam, em molduras de palha a cores, entrançada, tendo nos ângulos grandes laços vermelhos. Depois, mais longe, no recanto à direita, salientava em ângulo reto um pequeno espaço retangular, formando vão, e correspondente à caixa da escada do prédio, sobre o qual, como num estrado, se acomodava diretamente uma cama.

Daí voltou a lamuriar, mais imperioso e alto, o mesmo choro insistente de criança. Logo, muito solícita, a Ana acudiu; e erguendo da cama uma criancita de meses, que beijou com efusão, enquanto a embrulhava num velho saiote seu, de baetilha, veio com desvanecimento oferecê-la ao pai, que, beijocando-a também:

— Então esta berrelas está acordada?

— Olha, foi obra ali dos vizinhos... — disse Ana, baixando a voz e indicando a cozinha.

— Como?

— A bulharem, como de costume!

Complacente, o Esticado teve um sorriso de piedade; e deixando-se cair, à ilharga da cama, sobre um grande canapé de palhinha, estripado, tirou então pachorrentamente a boina, a blusa e as calças, sacudindo a cada momento as mãos, em vagas, expirações de arrelia. Aa lado dele, interessada e imóvel, com o queixinho apoiado na mão e o cotovelo finque no braço do canapé, a filha mais velha, lembrando um arcanjo rafaelesco, seguia-lhe carinhosa os movimentos com uns grandes olhos compadecidos.

Quando viu o homem em camisola e ceroulas, apoquentada sinceramente, disse Ana:

— Mas que hás de tu vestir agora?... Valha-me Deus!

— Então a outra blusa?

— Lavei-a há bocado... Está lá fora, a enxugar.

— E a jaqueta de ver a Deus?

Sempre com a filhita ao colo, Ana estendeu ao marido umas calças que tirara da cômoda, e baixou os olhos, sem responder.

— Ah, sim... está no prego! A guarda-roupa dos pobres... — obtemperou o Esticado, com amargura. — Não me lembrava, mulher... É sina! — Depois, com a mais estoica resignação, erguendo-se: — Bem olha... A camisola escapa, fico com ela... Deita-me o teu xale pelas costas. Por agora, remedeia!

Com um sorriso triste, soltou Ana a escapola, que o sustinha, o seu esfiampado xale cor de cinza e passou-o aos ombros do marido, que com uma forçada animação, mirando-se:

— Então, que tal?...

— Quem me dera o teu gênio!

— Não estou nada mau...

E, num saracoteio de troça, já todo faceiro o Esticado saía para a cozinha, com a pequena lida segura aos restos de franja do xale, e atrás a Ana com a outra filhita ao colo e o candeeiro na mão.

Mal que naquele preparo o virara, a Clara e o Serafim não se puderam ter que não rompessem, mandíbula batente, a rir. E, muito desvanecido, o Esticado, dessa mesma zombeteira acolhida tirando estímulo:

— Estou um bom pãozinho, hein?... para fazer rente a um guita? — Mas de repente, sério, arrumando-se num cansaço contra a sua mesa, sobre a qual pousara a Ana o candeeiro, suspirou: Ai! Ai!...

não há remédio senão fazer a gente gala na miséria... — Depois, quadrando-se na cadeira e arranjando ao lado lugar à filha: — Vamos nós mas é fazer bem ao estômago... enquanto há que comer!

A Ana fora à lareira, e punha agora diante do marido um tacho com comida. Trouxe talheres, o pão, o vinho, e sentou-se também, sempre ao colo com a filha.

— Servem-se? — ofereceu o Esticado aos vizinhos.

— Obrigado... a nossa já cá canta, — respondeu, do seu canto, o Serafim, enrolando um cigarro com a folha da navalha, que sacara do bolso.

Clara, essa, parecendo-lhe haver agora ali demasiado luxo de iluminação, apagou a sua candeia.

Entretanto o Esticado, com a mais patente voracidade, passava ao prato e rapidamente deglutia o guisado que tinha diante de si, fumegando, — inclassificável miscelânea de ossos, gorduras, alguma batata, muito tomate e nacos de chouriço. Enquanto comia, disse para o Serafim:

— Esta só pelo diabo! hein?... com uma noite assim, como há de a gente ir?...

— Aonde é que vocês vão?... — acudiu logo a Clara.

E o Serafim, com mau modo:

— Não é da sua conta!

Mas já o outro inquiria com interesse a mulher:

— Tua mãe não quer comer?

— Não... Coitada! Desconfio que está pior.

Tinha feito o prato à Ildazita, e, soltando o lenço de lã cor de chocolate, que um alfinete lhe mantinha trespassado sobre o seio escasso, deu o peito à filhinha que tinha nos braços, e procurou também comer.

— Anda, come, mulher! — incitava o marido com meiguice.

— Não posso...

— Asneiras!

— Se tu tivesses a dor que eu tenho... Vai-me do peito às costas!

E, de cotovelo na mesa, a pobre Ana dobrava-se toda, extenuada, febril, pela implacável sucção da filha.

Na sua instintiva lógica infantil, a Ildazita entendeu que não precisava de garfo, visto que as suas mãos tinham dedos. Mas o pai, dando-lhe uma forte palmada:

— Menina! Então... Tenha propósito! Não me seja porca.

A mãe acudiu logo em defesa da inocente. E o pai, com violência, assentando de ímpeto o punho fechado sobre a mesa, num trejeito de enfado:

— Aí está para que nos serve esta praga! Deus me perdoe... Nem uma pessoa é senhor de comer descansado! Vamos a querer-lhes dar educação e logo saltam as mães com a água benta... Forte estopada!

— Ó homem! Deixa o anjinho... — suplicou Ana com invocativa ternura, passando os dedos emaciados pela cabecita de ouro de lida, em cujos olhos bailavam amimadamente lágrimas. — Credo! Até nos pode o céu castigar...

— O céu! O céu!... — fez, desdenhoso e incrédulo, o mocetão, abanando os ombros. — Olha, num inferno estamos mas é nós aqui, com esse raio dessa porta aberta!

E aconchegando o xale encarava oblíquo, para a esquerda, numa colérica visagem, a porta que dava para a escada. Correu logo a fechá-la a Clara, que continuava junto dela, em pé, arrumada de costas e espalmadas às mãos contra a parede.

— Obrigado, vizinha! — retribuiu o Esticado, sem olhar, todo novamente dobrado sobre o prato. E, enquanto comia, voltando à rezinga anterior: — Não, mas é que é assim... até nesta obra dos filhos essa corja dos ricos têm sorte! Vocês não veem?... Quantos não há, aí assim, a nadarem em dinheiro e sem filho nenhum!

— E a má semente... — murmurou o Serafim.

— Nós cá então, os pobres, os da ralé, como eles nos chamam... sem mantença que chegue não que nem sequer para nós, e é isto... E apontava as duas filhas. — Cada cavadela, cada minhoca!

— Deixa, homem... — observou Ana com doçura. — Tudo o que vêm é para bem!

Depois de uns minutos de silêncio, voltara-se agora o Esticado, tendo acabado de comer, para o Serafim; e enquanto inflamava a ponta do cigarro ao alto da chaminé do candeeiro:

— Então a gente vai, ou não vai?...

— Deixa ver se para a chuva.

— Ele o vento cada vez é mais... E tanto fez fechar a porta como nada! Olha, olha... Raio de casa!

que continuava lufando com violência o vento, que varria em todas as direções a quadra, entrando pelas numerosas fisgas e juntas imperfeitas. Vinha assim da escada, a espaçados ímpetos, um forte cheiro a bacalhau assado, ao tempo que também, soprada em tremiculosas ampliações e prestes a apagar-se, crescia agitadamente a chama do candeeiro.

Entretanto, o tanoeiro explicava:

— Então?... tu bem sabes que todas estas casas aqui da Belavista foram feitas quando foi da nossa greve...

— Fizeram-na asseada!

— Pudera! Nem nós sabíamos da poda, nem as madeiras eram próprias. Foi um simples remedeio, para nos entreterem, para nos darem que fazer.

— E então vocês arranjaram estas indecentes barracas!

— Pois sim, mas o senhorio leva bom dinheiro por elas! — apostrofou a Clara com decisão.

— Almas do diabo! — rosnou o Esticado, quase imperceptivelmente, crispando numa ameaça os punhos e repregando os olhos.

O Serafim foi à janela, e depois de investigar um momento para o exterior:

— Espera... o vento parece que quer rondar ao norte. Isto ainda se compõe... — E voltando para o seu canto predileto: — É verdade, ó Clara, olha lá... tu é que podes dizer à gente... Que faixa tem o novo contramestre lá da fábrica?

— Quem, o Sr. Mateus?... É um homem muito bem parecido!

— Eu ainda o não vi. Há que tempos que não vou para esses lados!

— disse Ana naturalmente, com a filhita ao colo, movendo os

joelhos num carinhoso embalo, sentada junto da mesa, onde pousava, sobre as mãos, a loira cabecita da lida adormecida.

O Serafim tornou:

— Gostam lá dele?

— Muito!

— Homens e mulheres?

— Toda a gente.

— Por que diabo é isso?... — interveio o Esticado, dobrando com interesse o busto nos joelhos.

— Tem muito bom modo, sim senhor... E então umas falas! Um modo de dizer as coisas, tão bom, tão claro, tão lindo, que parece que vêm direito ao interior da gente!

— Que bem informada que tu estás!

— Ah, não que ele vai lá aos teares, muita vez... Trata muito bem a gente... E tão senhoril, tão principal! Ele é que parece o patrão.

Com um ar desconfiado, disse então o Serafim para o amigo:

— Que te parece?...

— Sabe-a toda!

— Tem querença para as mulheres, o ladrão!

— A mim cheira-me mas é a que o maroto usa de manhas de jesuíta... Já me não agrada!

— Não, homem... deixa ver!

E, dizendo, o Serafim voltara à janela:

— Olha! Já vejo estrelas... Vamos?...

Esticado pôs-se em pé, e num lastimoso acento, mirando-se e sorrindo:

— Mas como?...

— Não saias... — ainda insinuou Ana docemente.

— Se tu queres, — ofereceu com vivacidade o Serafim, cujos olhos brilhavam de uma ânsia doentia, — tenho aí um casaco de pano que outro dia comprei na Feira da Ladra. Ainda nem o estreei... Está-me largo, deve-te servir.

— Venha de lá isso! — exclamou o Esticado, jucundo, de rompante, arremessando para a cadeira o xale e retesando num aprumo viril os braços; ao tempo que as duas mulheres trocavam um olhar de muda submissão, contrariadas.

— Clara! Despacha-te... dá cá essa coisa! — disse então com império o Serafim para a mulher, que atarefada se sentia remexer roupa, dentro, na alcova junto à janela. E como demorava a aparecer: — Deixa! Que tu não dás com ele.

Por seu turno entrou, e daí a instantes voltava, com a Clara seguindo-o, e suspenso na mão o casaco, que o Esticado enfiou num pronto.

— Ora! Está ótimo... Parece que foi feito para mim!

— Nem um fidalgo, sim senhor! — aplaudia o Serafim, batendo as mãos.

— Bem... vamos lá! — disse com decisão o caixoteiro, já de chapéu na cabeça, abrindo a porta.

— A que horas vens? — perguntou-lhe Ana, no patamar, enquanto iluminava.

— Sei lá!

— Não, diz... Sempre gosto de saber.

— Não sei, mulher... que seca! Quando vier, cá me encontras...

Deita-te... Fechem bem a porta!

— Valha-me Nossa Senhora! — suspirou resignadamente, recolhendo com a luz, a rapariga.

Chegados agora ao fundo da escada os dois companheiros, pararam um momento à porta, já os pés assentes na soleira, pregados numa incerteza perante a vaga escuridão da noite.

— Vamos a direito? — perguntou o Serafim.

— Não... — acudiu logo, acendendo outro cigarro, o Esticado. — Vamos aqui primeiro pela ilha do Grilo, buscar o Manaio. O Silvério diz que também quer ir.

— Ó homem, vê lá...

— Fico por ele!

— Bem... Se aquele bolha do Ventura se decidisse a vir também e deixasse as raparigas em paz por hoje!

— Isso sim!

— Era um sócio de primeira ordem para a coisa...

— Com aquela esperteza, aquele gênio!

— Mal empregado rapaz!

Assim discorrendo, os dois avançavam de manso pelo macadam da rua larga e mal iluminada, derreados e mãos nos bolsos, chapinhando na lama. Ao cabo da rua, aí onde isolado se erguia um pequeno prédio em osso, — provisória construção ainda por concluir e já tombando em ruína, — tomaram à esquerda, internando-se então às terras, por um estreito carreiro valeirado no terreno natural, anfractuoso, irregular, cada vez mais cavado descendo entre áridos taludes negros. Aqui a iluminação municipal acabara-se; o último lampião tinham-no eles já deixado nas costas, soldado à esquina, contra a taipa desnuda do prédio em osso, cuja

desamparada armação se riscava com trágica violência no espaço, como uma forca. De sorte que se adiantavam com crescentes precauções, a cabeça baixa aproada ao nordeste e sumida até aos olhos a face nas golas levantadas, enquanto essa luz rasa e agonizante lhes estirava para a frente indefinidamente as sombras, ao longo da viscosidade barrenta do caminho.

A um ângulo mais escuso, o Serafim parou:

— Não enxergo nada, que raio!

— Não tens mais cigarros?... Toma! — ofereceu-lhe o companheiro.

O tanoeiro aproximou-se, acendeu; depois reataram a andar, e esclareciam agora o caminho, alternam ente puxando a brasa dos cigarros.

Em volta deles, àquela hora desabrida e triste, alastrava uma implacável toalha de sombra... a obscuridade, o silêncio, a desolação eram completas. Na álgida pacificação da noite apenas ressoava, pegajoso, espaçado, o chlap, chlap do seu calcar na estrada. E, por cada fumaça que tiravam, instantâneas na sua frente as poças de água luziam como espelhos. Como o caminho seguia cavado sinuando pelo dorso do outeiro, a um e outro lado o instinto dos dois adivinhava um largo desdobramento de aspectos, panorâmicas distribuições que lhes eram familiares, os extensos e variados panos de perspectiva a que tão afeitos andavam os seus olhos extenuados.

— Assim, para a esquerda pressentia-se um amontoamento vago de construções, a vida industrial empilhada e intensa, como que um grande formigueiro em repouso, a leviatanesca fecundação da miséria e do trabalho; claraboias, telhados, armazéns, alpendres, longas blindagens de zinco mordidas de oliveiras, apontavam de escorço nesse imenso anfiteatro, que descia a quebrar-se abruptamente, em duras linhas caprichosas, no manso estanho horizontal do Tejo. Para a direita, rasgava-se-lhes no flanco a violenta curva da linha-férrea de cintura, ao longe barrava o horizonte uma chapada negra, e entre estas duas projeções de tinta, mais opaco ainda e mais negro, se era possível, corria como um

traço o estreito vale de Chelas, picado aqui e ali de luzitas distantes, como pirilampos, e com a fiada valente das suas fábricas adormecidas acusada apenas pela floresta das chaminés, que em esfumaçamentos de cinza se aprumavam num arranque triunfal para o Infinito, sob o peneiramento lúcido das estrelas.

Agora, súbito, o talude natural das terras interrompia-se, continuado como que por um duplo muro vertical, alto e seguido, num paralelismo linear, formando rua. Tomando por ela, os dois internaram-se numa espécie de corredor de Penitenciária, negro claustro aberto à noite, velha catacumba desterroada, a qual mergulhava por igual na treva e em cujas misteriosas entranhas arfavam gemidos vagos, tremulava o dolorido murmúrio de um grosso resfolgar humano... Estavam na ilha do Grilo. — Um duplo renque de casebres, de singela madeira e taipa, mal armados, imundos, quase sem beirais, sem forros, sem vidraças, todos riscados no mesmo padrão, com a mesma feição patibular, todos calcados no anonimato peculiar às coisas ínfimas. Assim como era um, eram todos. Rés do chão e um andar: embaixo, alternadamente, uma janela e uma porta; em cima uma sucessão monótona de janelas. Mas nem as portas tinham resguardo, nem as janelas caixilhos por onde entrava a luz, havia de entrar também o vento, a chuva, o frio, o calor, toda a sorte de inclemência. As paredes eram uma casca de noz, os alicerces uma abstração, a segurança um mito, a higiene um impossível. Aberta, cada uma destas reles barracas era uma praça; fechada, era um túmulo. E túmulo com carneiros, pavorosamente cavado em subterrâneas ramificações, a avaliar pelas exíguas frestas que no seu carcomido rodapé tenuemente luziam, aqui, ali, mesmo à raiz da terra.

Ao longo de toda a ilha alastrava a mesma grossa e vaga escuridão do campo. Apenas, a intervalos irregulares, algumas raras janelas, como vazias órbitas de espectros, radiavam lívidos luaceiros na absorvente espessidão da sombra. O piso, talhado no terreno natural, era um misto traiçoeiro e imundo de restos de comida, dejetos de toda a sorte, cacos, barro, cisco, cascalho e lama. Na grande valia longitudinal fermentavam acidamente as podridões.

Havia um cheiro acre e nauseante, cumulativamente a hospício, a curral e a cemitério. E dessa sórdida promiscuidade animal, dessa fruste aglomeração de miseráveis, subia para a frialdade inerte do ar, dançando nas infetas emanações de caneiro insalubres harmonias, um como surdo verrumar de febre, um atormentado e bárbaro concerto, feito ao mesmo tempo de pragas, risos, lamentações, balidos de cabras, mugidos de vacas, grunhidos de porcos, latidos de cães e choros de crianças.

O Esticado parou junto de uma das portas, à esquerda, e pondo o pé no degrau, bateu:

— Ó Manaio!

— Quem é?... — rompeu de dentro uma voz rouquenha.

— Manaio! abre...

Uma pequena cabeça grisalha assomou ao postigo, desconfiada. — Ah, são vocês?... Entrem!

E o mesmo homem pequenino e curvo, logo cobrada a confiança, escancarava a porta para o interior da sua misérrima toca. — Um acanhado recinto, surrado e negro, simultaneamente sala e cozinha, atramochado de coisas sem brilho, pelintras, reles, a mais formal negação do asseio e do conforto. Em cima da mesa havia um candeeiro de petróleo, de folha, com a chaminé partida. Junto à lareira, sobre uma arca, enovelava-se uma velha com um gato ao colo. E num recanto à esquerda, protegida por um tênue resto de cortina de chita, farpada, correndo sobre uma corda, jazia uma enxerga ignóbil afogada num monte de farrapos, entre os quais aflitivamente se debatia estrebuchando, arfando, como tenalhada nas garras imateriais de algum pesadelo, uma rapariguita apenas núbil, esgalgada, anêmica, o cabelo raro e sem brilho, afilado e branco o nariz, e uns grandes olhos cor de cinza no rosto oblongo, mordido das bexigas. — O Manaio insistiu:

— Então vocês não entram?

Mas logo, sem perder tempo a entrar, o Esticado:

— Queres vir?

— Merecerá ele a pena?...

— Eu cá estou que sim... — apoiou o Serafim, com a pupila num fulgor de esperança.

— Ó filhos! é que eu já estou tão escaldado de fantochadas destas... — objetou o Manaio; e depois de uma breve hesitação: — Enfim! Como vamos todos de paródia...

Tornou dentro, à alcova, e reaparecendo logo de chapéu na cabeça e um velho xalemanta pelos ombros:

— Vamos lá!

— Não saias, homem! — observou-lhe mansamente, imóvel no seu púlpito, a mulher.

Fitou-a o Manaio de rancor, sem responder, e encaminhou-se à porta; ao que ela, projetando longe o gato e saltando a segurar-lhe a franja do xale:

— Aonde é que tu vais? Não ouves?

O homúnculo sacudiu-a, num arremesso:

— Larga-me!... Olha essa rapariga... Fecha a porta! — E, já fora, arreliado e tateando à cautela o espaço, enquanto enterrava os pés no lamaçal: — Ora o diabo da tarasca!

Tinham os três dado alguns passos no escuro, quando com o Esticado esbarrou um vulto desempenado e esbelto, cujos grandes olhos ardentes cintilavam na treva como carbúnculos, e que no mesmo sentido deles seguia, porém mais depressa.

— Ó Ventura! és tu?...

— Adeus! Seus bandidos...

— Não vens até Marvila? — arriscou-lhe ao ouvido o Serafim.

— Se eu fosse tolo! — E, perante o desapontado gesto do tanoeiro:

— Nada! Não acho graça a homens... Vou-me mas é bater até à fonte da Samaritana.

— Com uma noite destas?...

— Pro amor são as melhores! — E com inflexões de sátiro, baixando a voz, para o Serafim, a quem apertava nervosamente o braço: — Demais a mais, hoje tenho lá coisa... daqui! — Premia lascarinamente o lóbulo da orelha, e explicava, a seguir: — Uma petizota dos Fósforos... em primeira mão, dizem... Anda a meter-se-me à cara, mesmo perdidinha por mim!

— Não te dói a consciência, meu traste?

— Então! Se há de ser outro...

— O diabo te de o que te falta! — resmoneou o Manaio, enfadado.

— Ah, por enquanto, não falta, não... graças a Deus!

— Olha que áfrica! — desdenhoso comentou o Esticado.

— Adeus! Adeus!

E, assobiando e saltando, o Ventura desceu a rua e breve o seu ágil perfil desaparecia na sombra.

— Não tem emenda, este ladrão!

— Anda aqui ao Silvério... — dizia para o Manaio o Esticado tomando-lhe do braço.

— Olha que eu não sei se ele virá...

— Por quê?...

— Aquele mulherio todo tem lá feito hoje um inferno!

— Diabos as levem!... Não era eu... Mas é que capaz de não vir!

— Era até uma Providência! — arriscou, muito intencional, o Serafim.

— Mas que cisma que tu tens com o homem! — retorquiu logo, numa exaltação, o Esticado. — Quem demônio te azoinou assim?...

Olha que ele não é o que tu pensas... Vamos sempre lá a ver!

E, seguido dos dois companheiros, silenciosos, o caixoteiro demandou, com uma rápida segurança de familiar, uma porta que estava entreaberta, quase ao cabo da ilha.

— Licença a três, seu Silvério!

— À vontade, amigos! — disse de dentro uma voz pausada e cheia.

Ao convite, o Esticado fez rodar a porta e entrou, enquanto, suspensos no limiar, com um pé sobre o degrau, os outros dois encaravam num confrangimento de tédio o desordenado e torpe interior da locanda. — Aberta a porta, logo de dentro vaporou este cheiro peculiar, relentado e doce, denunciativo de grande acumulação de mulheres numa casa. Ao fundo, contra a parede salitrosa e verde, abancava junto à mesa o Silvério, tipo flácido de gordo, muito branco, timpânico o abdômen, as carnes empapadas, o cabelo ruivo já rareando, o nariz afogueado, e na larga insipidez da face rolando lascivos uns pequeninos olhos negros. Ele tinha ao lado, sobre a mesa, uma botija de genebra, e com os dedos cruzados amparava o ventre, cuja obesa enormidade lhe fazia retesar opressivamente o busto, firmando na parede a nuca. Em volta, aos seus pés, todo o sobrado andava crassamente juncado de trapos multicores, dos mais diversos tecidos, das mais opostas procedências, porém todos por igual saturados de porcaria, realizando maravilhosas combinações de tons, de linhas, de relevo, como o mais imaginoso tecelão persa não lograria inventar, e sobre cuja andrajosa imundície seis criancitas, todas quase da mesma idade, refocilavam nuas, no abandono e na fome... Também, de pé junto da mesa, em atitude mutuamente agressiva e ardendo-lhes de um lume odiento os olhos, viam-se três mulheres, todas novas, com um patente ar de família, todas de um traço de parentesco próximo por igual marcadas.

O Esticado disse:

— Ó seu Silvério! O dito, dito... Cá estamos!

— Ah, sim, eu vou... — disse moroso o confesso polígamo, deslaçando as mãos e espreguiçando-se.

— Estava a pôr esta bicharia na ordem!

Maliceiramente, olhando baixo as mulheres, o Esticado sorriu. E impaciente o Silvério, erguendo-se:

— Safa! Que praga... Dão comigo em doido!

— Pudera!... e você para que é torto?... — rompeu uma das mulheres com arrogância, crescendo para o Silvério, de mãos nos quadris e prolongando ameaçador o queixo.

— Torto por quê?... — acudiu outra do lado, a mais velha, interpondo-se. — Lá voltas tu! Para que é isso bom?... Tudo porque o meu homem me deu uns reles dez tostões da féria, e a você não lhe deu nada.

— Já se deixa ver que sim!

— Ó minha alma esganada! Pois tu não vês que ele direitamente é meu e só meu?... que comigo é que ele foi à igreja?

— E tu não reparas que, se o padre lhes fez lá a vocês essa intrujice das rezas, eu não tenho menos direitos?... Tenho aqui assim, nada menos! Três filhos... Vês?... Isto não é nada?

E num enternecido ímpeto puxava a si as crianças que largaram a chorar com medo.

— Quem te mandou pôr debaixo dele? — volveu a outra.

— Não quero cá saber! Tanto é pai de uns, como de outros... Tem igual obrigação!

— Isso é que não tem!

Pachorrentamente, num vaidoso cinismo, tinha ido o Silvério, em silêncio, tomar o chapéu de sobro uma cadeira; ao passo que o Esticado continuava a sorrir, escandalizado o Manaio retrocedera para a sombra da rua, e piedosamente o Serafim, embrulhando um cigarro:

— Para que uma mãe cria três filhas!

Mas agora adiantava-se a mais novita das três raparigas, e num lastimoso acento, a que emprestava eloquência a ruína precoce da sua figura:

— E então eu?... Vamos! Eu é que estou primeiro que ninguém! — Espanto refilão das outras duas. — Talvez não seja de razão?...

— Coitada!

— Vocês têm saúde, estão capazes de trabalhar, podem ganhá-lo...

enquanto eu, por me fiar nas araras deste senhor, lixei-me... fiquei arruinada para toda a minha vida!

E num jeito doloroso, curva à frente, premia com as mãos o ventre, à altura dos ovários.

— Então, que querem vocês? — explicava conciliador, entre aquela lacrimosa tríade, o lamecha do Silvério. — Isto tem de ir por partes...

Hoje uma, para semana outra... Sempre assim foi! O que eu ganho não dá para todas.

— Ora adeus! Quisesses tu...

— Silveriozinho da minha alma!

— Não, não... não posso! Já disse. Nem vocês precisam... Deixem-me! — Adiantou-se à porta, com o Esticado. — E ala! Que se faz tarde.

— Não, sem me dar alguma coisa é que você não vai! — exclamou resoluta a mais ribaldeira das três mulheres, barrando-lhe o caminho.

— E a mim também... olé! Tenho que ir à botica! — reforçou no mesmo tom a mais nova.

— Não dês! Não dês! — gritou a terceira, de murro erguido às irmãs, que abanou pro lado.

— Atreve-te, que te chego!

— Você aqui não manda nada!

E num furioso ingranzéu, tomando roda à pacífica figura do Silvério, acotovelavam-se, injuriavam-se, fazendo-lhes coro o amedrentado grazinar dos pequenos.

— Ah, ele é isso?... — exclamou por fim, rota a paciência, o matulão.

— Eu já vos arranjo! — Em duas musculosas braçadas desembaraçou-se, atravessou a quadra, com o Esticado adiante de si; depois, já na soleira, puxou sobre si a porta, a que desandou a chave; e, metendo-a na algibeira: — Agora, chiai para aí!

Dizendo, saltou para a rua, numa grossa expiração de alívio, enquanto dentro rompia uma atroadora litania de maldições, acompanhada do reboante matraquear dos punhos abanando a porta.

— Que paciência que tu tens! — fez, num dó, o caixoteiro.

— São os meus pecados, homem...

Chegavam ao pé do Serafim e do Manaio. Aquele observou:

— Falta o Lourenço, das Varandas.

— Ele ficou de vir aqui ter... — aclarou o Silvério.

— Diabo! Para irmos agora à vila Dias, faz-se tarde... — disse o tanoeiro, impaciente, profundando longe com o olhar o espaço.

— E ele que já conhece o gajo, de lá da fábrica! — disse o Manaio. — Não se me dava de o ouvir primeiro.

— Ah, ei-lo aqui vêm! — prorrompeu radiante o Serafim.

E indicava um vulto tarraco e negro, que pela rampa em curva do fim da ilha vinha subindo, açodado.

— Ora vivam lá!

— A que horas vens!

— Tenham paciência... Isto, ao sábado, sempre a gente ceia um pouco melhor!

— Virá também alguém de Xabregas?... — perguntou o Esticado.

— Provavelmente.

— Pois, olha, eu dispensava-os bem! — resmungou o Serafim. — São muito burgueses demais... querem-se folgados. Não gostam de se incomodar!

Agora, avançando os pés com precaução, os cinco operários desandaram, medindo a todo o comprimento a ilha, e voltando a percorrer toda a rua da Belavista; depois, cortando ao alto a calçada do Grilo, internaram-se pela rua de Marvila, voltando novamente a marchar na mais completa escuridão, entre altos muros solitários. — Na sua maior extensão a rua de Marvila, desprovida ainda de iluminação a gás, era de noite servida por alguns escassos candeeiros de petróleo, que a câmara dos Olivais mantinha. Naquela noite, porém, obra talvez do temporal, estavam apagados. O que fez, numa inquieta surpresa, o Lourenço observar:

— Diabo! Marvila assim às escuras... Isto é um perigo!

E instintivamente os seus dedos nodosos procuravam a sevilhana no bolso da jaqueta.

— É que o Zé Pequeno fez o que lhe eu disse... — explicou com sibilino ar o Serafim. — Apagou os candeeiros!

— E para quê!?...

— Para a patrulha, se nos visse e mais os outros nestas andanças, não desconfiar...

Então, tranquilizados e fortes da engenhosa explicação, todos cinco atacavam agora a sombra com denodo, o tronco atirado à frente, e os pés tartameleando incertos no basalto.

— Vamos então ouvir coisas bonitas? — mascou em tom incrédulo o Silvério, renovando entre os dentes o cigarro.

— Mais cantiga, menos cantiga... ora adeus! — arrastou o Manaio, num desdém.

— Não senhor! — emendou logo o Serafim com ênfase.

— Ora! E eu que os conheço...

— Este agora é outra louça, verás!... Desta vez é que a coisa rebenta!

E como que prematuramente vergados ao tráfico vaticínio desta hipótese decisiva, avançaram uns segundos em silêncio estes broncos conspiradores. Até que, num palpitante interesse, parando de andar, o Manaio:

— Mas afinal que casta de homem é ele?

— Tem uma linda apresentação, isso é que tem! — disse o Esticado.

— E é uma grande cabeça! — admirativamente completou o Serafim.

— Olha, aqui está o Lourenço, que o conhece, de quando ele andou na fábrica das Varandas.

— Ó Lourenço, que tal?...

— Eu cá gosto dele! É honrado, é sério... sabe de tudo!

— Caramba!

— E muito bons conhecimentos lá fora!

— Como é que tu sabes?

— Mostrou-me ele cartas, livros, jornais... muitas vezes! É homem de capacidade, isso é... Não andam aí nessa patifaria da política muitos que se lhe comparem... Isso então na honradez, nenhum!

— O homem embruxou-te, não há que ver...

— Digo-lhes mais: com ele, ou mandado por ele, eu ia ao fim do mundo!

Com a curiosidade progressivamente estimulada, o Manaio disse:

— Diz que tem um partidão nas mulheres!

— Oh, se ele me livrasse das que lá tenho em casa! — rompeu com ânsia o Silvério.

Ao que os outros de força riram. E reataram todos caminho.

Tinham agora alcançado o ponto em que a estrada, dali ao Poço do Bispo, era já servida pelo gás. Então, nesta invasão súbita da luz, contraíam-se-lhes de instinto as íris, e, automaticamente movidos naquela cegueira de momento, iam os pés dos cinco esconjuros tropeçando nas pedras erráticas do caminho. Mesmo o Silvério, com

sua grande obesidade desatinado e perro, atolou-se na brava torrente que, grossa da chuva, pelo rego longitudinal do centro da rua jorrava a sua tara perene de imundícies, em pastosos gorgolões enastrados de trêmulas arestas de prata.

— Raios parta diabo! Para onde é que eu vou?...

— Aqui, homem! Perdeste o tino? — o Manaio gritou, tomando-lhe do braço.

Foi quando cavidamente, fazendo pé num escasso retábulo de sombra, o Serafim observou:

— Ó rapazes! O seguro morreu de velho... Agora aqui é melhor separarmo-nos.

E cauteloso parou, de mão na ilharga, depois de haver num jeito banzeiro inclinado o chapéu à nuca, o esguio tronco acuchilado sobre as pernas em compasso.